o trauma
na realidade, o que esta fotografia tem de intolerável é precisamente o seu espaço-tempo em quiasmo. é assustador assistir à morte de um homem, mas é insuportável saber que essa morte aconteceu e, ao mesmo tempo, permanecer para sempre à espera do momento em que o tiro será disparado. chegaremos sempre demasiado tarde, no real, e sempre demasiado cedo, face à imagem, para assistir ao assassinato e, a fortiori, para o impedir.
thierry de duve, lisboaphoto (2005)
[sem título]
all art aspires to the condition of music. walter pater, the renaissance: studies in art and poetry (1877)
o jardim de pascoaes
o que da boca das fontes sai as golfadas é o silêncio - e sem o rumor da àgua como pode a estrela florir, a pedra arder e ser ave? eugénio de andrade, de pequeno formato (1997)
trabajos del poeta
luego de haber cortado todos los brazos que se tendían hacia mí; luego de haber tapiado todas las ventanas y puertas; luego de haber inundado de agua envenenada los fosos; luego de haber edificado mi casa en la roca de un No inaccesible a los halagos y al miedo; luego de haberme cortado la lengua y luego de haberla devorado; luego de haber arrojado puñados de silencio y monosílabos de desprecio a mis amores; luego de haber olvidado mi nombre y el nombre de mi lugar natal y el nombre de mi estirpe; luego de haberme juzgado y haberme sentenciado a perpetua espera y a soledad perpetua, oí contra las piedras de calabozo de silogismos la embestida húmeda, tierna, insistente, de la primavera.
octavio paz, trabajos forzados (1949)
[carolina dixit]
eu quero ser, para sempre, pequenina no colo do meu pai.
carolina (aos dois anos e oito meses)
[sem título]
[...]
levanto-me então da plateia e, por entre as metralhadoras esculpidas, conto de novo a parábola da agulha, que me obceca. desentranhei-a de um velho manual.
trata-se de uma mulher que perdeu uma agulha na cozinha e a procura na varanda de sua casa. acorre então o jovem que procura ajudá-la, e pergunta: que procura? - uma agulha. caíu-me na cozinha. logo o inexperiente jovem se espanta muito e quer saber porque a procura ela na varanda - porque na cozinha está escuro - responde a mulher.
[...]
herberto helder, retrato em movimento (1967)
estilo
se eu quisesse, enlouquecia.
[...]
herberto helder, os passos em volta (1963)
inscrição
quando eu morrer voltarei para buscar os instantes que não vivi junto do mar.
sophia de mello breyner, livro sexto (1962)
[sem título]
na sua forma mais sublime a música detém um poder universal que lhe advém da forma prodigiosa como se insinua no mais profundo dos códigos misteriosos pelos quais o corpo transmite os seus sinais ao cérebro.
assim, o cérebro trata as mensagens musicais como se elas viessem do coração e não do ouvido. esta música apropria-se da transmissão e chega ao cérebro não somente enquanto som, mas também como sentimento puro.
[...]
o espírito do ouvinte privilegiado tem a sensação de estar a escutar às portas da sua vida interior, de estar ligado à fonte da existência, longe, bem longe, do quadro mundano da experiência.
antónio damásio, le voyage magnifique (1997)
é um dizer
estende um pouco mais a mão
recolhe um a um os sinais do desejo
fogo de abelhas o sexo
espera a insurreição da cal
a espessa ondulação do vento
é sobre o corpo a própria exaltação
morrer nos flancos do amor é um dizer
repara como brilham os limoeiros
eugénio de andrade, véspera da água (1973)
[dedicatória]
in the vastness of space and the immensity of time, it is my joy to share a planet and an epoch with annie.
carl sagan, cosmos (1980)
you are welcome to elsinore
[...]
e há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita
[...]
mário cesariny, pena capital (1957)